USD 833 milhões

xitizap # 23

USD 833  milhões

Oklo—reactor nuclear

O Xenon e Gaia

Paparoca Frankenstein II

fotofolio Filipe Moreira

rapidinhas

 

 

 

a HCB não é um Yó-Yó cambial

 

ou

 

um rap de omissões e USD 833 milhões

 

 

Saboreava eu um raríssimo óptimo de Pareto - a reestruturação da Hidroeléctrica de Cahora Bassa (HCB) – quando fui incomodado por ruídos de fanfarra. Percebi depois que os descompassos assinalavam a apresentação de uma nova Pesquisa KPMG – As 100 Maiores Empresas em Moçambique (2004).

 

Note-se que estávamos então a 14 Dezembro 2005, 43 dias depois de um acordo sobre Cahora Bassa que, via USD 950 milhões, permitiria limpar a mega-dívida da HCB ao tesouro português.

 

Sem pachorra para ler a dita Pesquisa, pelos media fui sabendo que, em 2004, a HCB havia sido a segunda empresa segundo o ranking KPMG. Para mim tudo bem… um mero trivial e croquettes já que era perfeitamente possível que, apesar dos grandes trabalhos em 2004, os USD 124 milhões de vendas de energia HCB garantissem um decente segundo lugar no ranking empresarial 2004.

 

Contudo, a fanfarra cacofónica ia aumentando de tom, e até já se ouviam enormidades do tipo: - eh pá, por pouco o Volume de Negócios da HCB ultrapassava o da Mozal (USD 1 bilião).

- Não pá ! – respondia eu. Deves ter lido mal, de certeza !

Na altura, eu ainda pensava estar seguro de duas coisas: (1) que, no essencial, o negócio da HCB continuava sendo o das vendas de hidro-electridade e (2) que em 2004 a HCB havia vendido USD 124 milhões de hidro-electricidade (ver Box 1).

 

Mas, não fosse o diabo tecê-las, pelo sim, pelo não, fiz o download da Pesquisa KPMG.

 

E acreditem que passei dois dias com os queixos no chão.

 

Tudo porque, 43 dias após o novo acordo sobre Cahora Bassa, a Pesquisa KPMG fazia de conta que ele não tinha existido.

 

O que, para mim, era uma inadmissível omissão – que roçava até o enganoso.

 

De facto, lida e exaustivamente re-lida a pomposa Pesquisa KPMG 2004 – uma kitschy edição bilingue de 10,000 exemplares – constatei que não havia uma nota, uma observação ou sequer uma rubrica que ajudasse a compreender o extravagante Volume de Negócios HCB (2004) utilizado pela KPMG nos seus critérios de ranking.

Nem sequer se reproduzia esta curta e opaca nota na altura emitida pelos auditores da HCB (Ernst and Young) a propósito das exorbitantes receitas financeiras em 2004: “O aumento dos proveitos financeiros está relacionado com a flutuação negativa das moedas, principalmente do Dólar, nomeadamente no que respeita à actualização cambial das transacções passivas e com o fortalecimento do Rand ao longo do exercício.”

 

Incrivelmente, o facto de em 2004 a HCB ter contabilizado Receitas Extraordinárias no valor de USD 833 milhões que chutavam os seus Resultados Líquidos para USD 539 milhões (contra os negativos USD 292 milhões de 2003), não merecia qualquer comentário por parte da KPMG.

Apesar de toda a gente saber que, nesse exercício, a HCB havia apenas vendido USD 124 milhões de hidro-electricidade.

 

Como é óbvio, esta olímpica omissão induziu-me a maior perplexidade.

Em particular porque, numa altura em que decorre o julgamento do caso Enron – um caso que epitoma os perigos de contabilidades super-criativas e outros malabarismos cambiais – eu ingenuamente julgava que, pelo menos no Índico, a transparência contabilística era apanágio dos big-five da auditoria mundial. E que, portanto, cristalinamente explicadas deveriam ser quaisquer descomunais Diferenças Cambiais Favoráveis de 817 milhões de dólares americanos (98% das Receitas Extraordinárias).

Tudo isto eram conjecturas que me surgiam dos velhos e famosíssimos princípios da Prudência e da Especialização dos exercícios em contabilidade.

 

Mas, na verdade, a fundamental causa da minha perplexidade derivava sobretudo da frágil natureza em que se apoiavam tais Diferenças Cambiais Favoráveis. E, desde logo, importa notar que, em teoria, elas seriam resultantes do impacto da apreciação cambial do Metical face ao USD (2004/03) no gigantesco Passivo da HCB 2004. Curiosamente, um Passivo que, nesta mesma Pesquisa KPMG, me aparecia turvado por uma acrobacia de USD 280 milhões nos Capitais Próprios da HCB em 2003.

De facto, algo de misterioso, e que seguramente ultrapassava a minha compreensão, fazia com que os Capitais Próprios da HCB em 2003 fossem agora referidos pela KPMG como sendo (- 303.34) milhões de USD quando a anterior Pesquisa KPMG os apresentava como sendo (-20.47) milhões USD em 2003. Um mistério que acontecia em cenário 2003 de negativíssimos Resultados Líquidos (- 292 milhões USD).

 

Mas, por agora, deixemo-nos de ninharias de USD 280 milhões, porque não é por aí que o gato vai às filhoses.

 

O gato, tal como eu, antes prefere petiscar Receitas Extraordinárias à mesa cambial.

 

Por um momento, recorde-se que as Diferenças Cambiais Favoráveis contabilizadas pela HCB em 2004 (15,431,597 milhões de Meticais) resultaram do impacto que a apreciação cambial do Metical vs USD teve sobre o mega Passivo da HCB.

Se se assumir que 100% de tal Passivo está essencialmente indexado ao dólar USD (o que deve andar muito perto da verdade), constata-se que a HCB contabilizou uma apreciação na ordem dos 27% no período 2004/03; o que bate quase certo com as taxas de câmbio usadas pela HCB e KPMG (Dez 2004/Dez 2003) sugerindo apreciações cambiais MZM vs USD na ordem de 25.6% e 25.5%, respectivamente.

 

Contudo, uma pesquisa das taxas do Mercado Cambial adoptadas pelo oficial INE (com fonte: Banco de Moçambique), pelo FMI, e pelas praças internacionais, sugeria-me cenários de apreciação cambial significativamente diferentes: 23.2% (Praças Internacionais 31/12/2004 31/12/2003), 20.1% (INE/BdM Dez 2004/Dez 2003), e mesmo 14.2% (INE/BdM média de quarto trimestre 2004 e 2003).

Incidentalmente, e embora eu saiba que para tudo isto há regras contabilísticas (ver box 2), a atipicidade cambial USD/MZM registada nos últimos meses de 2004 sempre me sugeriu que, na minha caseira análise HCB, a taxa média do quarto trimestre talvez fosse a mais representativa para observar a HCB. Sobretudo porque a conspícua pobreza dos dados disponíveis não me permitia conhecer o saldo do Passivo HCB decomposto por moedas,;ou seja, nunca poderia chegar a contas exactas.

 

Nem tão pouco isso me interessava.

 

A mim, o que me interessava era chegar a uma aproximação quanto ao impacto que, neste caso HCB, a data em que se toma um câmbio (média do trimestre 4, média de Dezembro, ou 31 Dezembro) tinha na escala de variação dos Volumes de Negócio utilizados pela KPMG, e compará-lo dimensionalmente com os outros números da economia e finanças de Moçambique – o que, normalmente, é um exercício perfeitamente irrelevante.

 

Contudo, a coisa mostrava-se afinal muito relevante neste caso HCB.

De facto, umas simples simulações (ver box) sugeriam-me que, no quadro do gigantesco Passivo da HCB, qualquer 1% na apreciação cambial assumida poderia implicar diferenças na ordem de USD 35 milhões em termos de Receitas Extraordinárias. Ou seja, uma pequena diferença quanto ao dia cambial assumido suscitava gigantescas variações nos valores das Receitas Financeiras da HCB - tanto podiam ser USD 833 milhões (data câmbios HCB e KPMG), ou USD 582 milhões (câmbios INE/BdM Dez 2004/Dez 2003) ou mesmo USD 391 milhões (INE/BdM taxa média trimestre 4, 2004).

O que, à escala de Moçambique, é enorme. Inclusive em termos do real impacto dos ditos Volumes de Negócio nas eloquentes análises macro e sectoriais KPMG.

 

Tal como ao gato, estas volatilidades cambiais sempre me impuseram a maior prudência – em particular quando o piri-piri das contabilidades criativas se pode tornar excessivo. Como me parece ser este caso HCB, já que, tal como o demonstrarão os resultados HCB em 2005, a depreciação do Metical vs USD em 2005 poderá induzir Resultados Líquidos pesadamente negativos - uma sequela ficcional de yó-yós cambiais maquilhando deficits públicos. Às vezes, com anos perversos.

 

E esta é uma perversão que, quanto a mim, não deve ser servida à mesa do mundo de negócios.

 

No mínimo porque toda a gente sabe que, em Novembro 2005, se começou a fechar esse exótico circo de Receitas Extraordinárias – um yó-yó ao qual a KPMG disse ou diz NADA.

 

E, em jeito de despedida, regresso agora ao princípio para fazer notar que nem eu nem o gato fomos incomodados pelas oficiais contas HCB. Creio até que, malgré importantes omissões, elas estarão certas ao milímetro dos padrões de contabilidade internacional.

 

Tal como ao gato, que estava quieto no seu canto, o que verdadeiramente me incomodou foi o ruído da fanfarra KPMG  - e o estrilho que ela pode provocar na internacional apreensão dos efectivos Volumes de Negócio da HCB.

 

E quanto a este sistema de ranking KPMG, eu passo.

Passo, e a milhas. Já que, pelo meu ranking, em 2004 a HCB só ficava em sexto.

 

josé lopes

 

maputo

com o gato de Schrödinger

 

PS – sobre este assunto, por duas vezes contactei a KPMG via e-mail. E por duas vezes insinuei a possível necessidade de uma observação explicativa na Pesquisa. Por duas vezes, a KPMG recomendou-me que contactasse a HCB - a propósito de uma Pesquisa pública que é exclusivamente sua, KPMG – e não da HCB. Imagine-se o desplante…

 

 

Notas:

 

Em Portugal as diferenças cambiais são levadas à conta de resultados quer sejam positivas quer sejam negativas.

Mas por exemplo, no caso de Espanha seguem-se os seguintes princípios: (a) Se as diferenças cambiais forem negativas, a sua contabilização deve ser considerada como custo; (b) Se as diferenças cambiais forem positivas, as diferenças cambiais são consideradas como proveitos diferidos e só entrando em resultados no exercício em que ocorrer a liquidação da dívida.

 

Faz-se então referência aos princípios atrás enumerados, o da prudência e o da especialização dos exercícios. O princípio da prudência faz referência a que as diferenças negativas devam ser imputadas ao resultado do exercício enquanto que as diferenças positivas devem ser diferidas para o momento do vencimento da dívida. Segundo o princípio da especialização dos exercícios os custos e os proveitos só devem ser contabilizados quando obtidos ou incorridos, independentemente da data do seu pagamento.

Em Portugal, nos termos do POC, não existem normas semelhantes e as diferenças de câmbio positivas nas dívidas de/a curto prazo consideram-se sempre como proveito do exercício. No que respeita às diferenças de câmbio nas dívidas de longo prazo a contabilização já se processa de forma idêntica, quer em Portugal, quer em Espanha, pois são sempre diferidas.

O princípio da prudência é utilizado como forma de integrar um grau de precaução devido à incerteza quanto ao comportamento da taxa de câmbio futura.

 

 

 

as regras contabilísticas internacionais apontam para que, no balanço, se utilizem as taxas de câmbio oficiais de final do ano, ou seja o câmbio a 31 Dezembro.

 

 Na demonstração de resultados as datas de toma dos câmbios ou são as dos câmbios da cada operação, individualmente, ou o câmbio médio do ano.

 

Nas mais valias registadas pela HCB reflectirão muito provavelmente a variação das taxas de fim de ano sobre o saldo no fim do ano do passivo e moeda (USD e Rand).

 

Nada é arbitrário.

Incluindo a apreciação cambial do metical—que é um dado de mercado insusceptível de ficções.

 

 

sobre Contabilidades Criativas, Enrons e consortes leia este ensaio de Colin Boyd.

 

sobretudo se também está interessado nos conflitos de interesses entre o exercício de auditorias, contabilidades, legalismos, intra-promoção de negócios, consultoria técnica and so forth ….


THE STRUCTURAL ORIGINS OF CONFLICTS OF INTEREST IN THE ACCOUNTING PROFESSION

 

Colin Boyd

Professor of Management, College of Commerce, University of Saskatchewan

Abstract: This paper describes the professional ethical context behind the failure of Arthur Andersen’s audit of Enron. It is argued that the evolution of extreme industrial concentration in the accounting profession, and the subsequent unrestrained diversification of the “Big Five” accounting firms were the sources of multiple conflicts of interest that were unresolved by the time of the Enron debacle. In the post-Enron era, the problems of commercial conflicts of interest and of highly concentrated power in the profession remain important issues.

 

Accountancy is believed by its practitioners to be a profession, not a commercial venture.

 (Magill, Previts, & Robinson 1998: 4)

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