outubro 2003

elektro papos


hipocrisia hidro-eléctrica


numa época em que todo o mundo procura valorizar recursos hidro-eléctricos, a Electricidade de Moçambique (EDM) vota os seus ao desmazelo.


No caso, falo do Sistema Hidro-Eléctrico do Revué (SHER), o único sistema eléctrico verticalmente integrado de que a EDM dispõe - combinando produção hidro-eléctrica, transmissão e distribuição.


O SHER, construído durante a década de 1960's, foi concebido como pivot energético da região centro do país, e ao longo de mais de 30 anos potenciou o desenvolvimento da indústria em Manica e Sofala, o boom de serviços gravitando em torno do Porto da Beira, para além das primeiras experiências de electrificação rural no país.


Tecnica e economicamente bem concebido, e dotado de um fino escol de trabalhadores, o sistema SHER sempre foi capaz de responder aos desafios regionais com electricidade económica e fiável acabando por tornar-se um ex libris de Manica e Sofala - não apenas técnico, mas também de gestão e modernidade empresarial.


por isso mesmo nunca causou espanto que as tropas de Ian Smith, em guerra contra a libertação nacional do Zimbabwe, tivessem feito do SHER um dos seus mais importantes e sistemáticos alvos - semeando o constante terror civil, sabotando centrais, substações e linhas de transmissão.


E o mesmo aconteceu durante a guerra civil em Moçambique. Pela sua importância, o SHER sempre foi o alvo estratégico a abater.


Mas nunca ninguém conseguiu dobrá-lo, e são inenarráveis várias das suas batalhas.


E só mesmo por trágica ironia poderia agora acontecer, em paz, o que em guerra nunca foi conseguido - o aniquilamento do SHER pela EDM.


na verdade, quando se esperava que, no seguimento dos acordos de paz de 1992, o SHER recuperasse fôlego e se lançasse ao desenvolvimento com refrescada pujança, foi exactamente o contrário que aconteceu - e, paradoxalmente, o sistema entrou em inexorável processo de definhamento.


Mais de 10 anos passados após a celebração da paz em Moçambique, o SHER exibe hoje infra-estruturas técnicas muito mais débeis que as de 1992 - as duas centrais hidro-eléctricas estão cada vez mais longe dos seus standards, as barragens e açudes - cobertos de desleixo - choram lágrimas que até os crocodilos vêem. E a fiabilidade das linhas de transmissão continua caótica, com a Beira como palco de gravosas e sistemáticas faltas de energia. A cultura de empresa - essa, esvaiu-se.


à distancia, é possível situar as razões deste absurdo.


Tudo isto aconteceu a partir do momento em que a EDM conseguiu finalmente esvaziar o SHER de todas as suas autonomias básicas - abafando tudo o que era receitas, e ignorando as cruciais necessidades do sistema.


mas do caso talvez não viesse mal ao mundo se, porventura, a oficial EDM tivesse uma cultura de sistemas regionais, e integrados - para além de uma atitude operacional. Infelizmente assim não é, e o que daí resulta é um arrastar de desleixos, e a sistemática canibalização do sistema.


eu sei que, para a EDM, o custo do dinheiro está imbuído de lubrificada fluidez.


trata-se de um dinheiro público sem referenciais de retorno, sem contas anuais, e frequentemente sem propósito. Tesouros tão laxos que até não se percebe porque sobem as tarifas. Sobretudo quando se observa a propaganda EDM numa recente inauguração Quadrelec em Gaza - onde as imagens TV registam os olhos esbugalhados de uma camponesa incrédula com a divina graça de uma electricidade à borla.


"de graça ?" - admirava-se ela.


Mas, a propósito do sistema SHER, e dos milhões que a oficial EDM publicita todos-os-santos-dias, há uma simples questão que se me coloca: será que não sobra nada para repor os 50 bons e fiáveis MWs do SHER? que, en passant, muito ajudariam a revigorar economias e sociedades locais - satélites do sistema?


eu sei que é fácil des-localizar produções - promovendo desemprego e definhamento de economias locais. Sei também que para esta oficial EDM produzir energia é coisa chata, que exige trabalho e atitude. E que por isso é muito mais cómodo despender fortunas para que os doadores estiquem linhas a seu bel-prazer - mesmo quando o consumo é ZERO, e a qualidade nenhuma.

Tudos isto são especialidades desta administração EDM, para quem a filosofia continua a ser - alguém há-de pagar.


Mas sei também que, frequentemente, isto é desastroso para as gerações futuras. Sobretudo quando se vende o cú a mamutes. Como no caso Beira via HCB (Chibata) em que tudo se apostou na dependência do longe - obliterando o sistema local. Ou seja, afundando o SHER, e monopolizando a ligação da Beira a Cahora Bassa.


Todas estas questões SHER não mereceriam particular interesse não fosse o caso de haver obras públicas em perigo iminente - eléctricas, e sobretudo obras civis. Um património público cujo valor de substituição supera certamente os 100 milhões USD.


Pelas minhas contas, com menos de 10 repunha-se a dignidade do sistema e fazia-se frente aos desafios. Cá por mim, eu compro o SHER - por 1 dólar.


josé lopes


Maputo, outubro 2003


EDM     SE 4 - Maputo


outubro 2003 - transformador 10 MVA destruído por razões não divulgadas pela EDM. Milhares de consumidores ficaram privados de electricidade durante vários dias.


um investimento de milhões que ainda não havia cumprido um terço da sua vida útil.